A PROPÓSITO DE MARLY MOTA
Por Gilberto Freyre
O que mais me encanta na pintura, toda
ela lírica – mesmo quando anedótica – de Marly Mota, é a sua sensibilidade às
pequenas igrejas, aos pequenos sobrados, às casas de porta-e-janela dos burgos
docemente brasileiros que formam o seu “tipo ideal” de cidade. Ela surge como
uma espécie de irmã mais moça de um poeta que, se tivesse pintado, teria se
antecipado a Marly Mota nesse tipo de pintura terna e um tanto nostálgica e,
até, às vezes, tocada de uma leve melancolia, a despeito de suas cores vivas e,
aparentemente, sempre alegres e festivas: Ribeiro Couto.
(APL FOTOS – HOMENAGEM A ACADÊMICA MARLY MOTA)
Documentário? Não me parece que seja a
classificação que se ajuste à pintura de Marly Mota, embora ela venha a ser,
decorrido algum tempo, uma pintura de evocação e até de saudade de um Brasil
que começa a desaparecer. Ela é bem mais lírica do que documental.
Primitivo? É outra classificação que
talvez não defina a pintura de Marly Mota. Se há alguma coisa de primitivo no
seu modo de pintar é um primitivo tão pessoal, tão especificamente marlyano,
tão sutilmente marlyano, que é um primitivo à parte dos outros primitivos.
Estamos diante de uma artista em quem
se afirma, sem ênfase mas com nitidez, uma personalidade lírica que escapa,
pelo que nela é mais íntimo, à própria influencia do esposo: um dos maiores poetas
que o Brasil tem produzido. Não que não se encontrem traços dessa influencia:
há pinturas de Marly Mota que poderiam ilustrar poemas de Mauro Mota – aquele em
que o poeta nos fla de ruas recifenses de subúrbio, quase iguais a ruas de cidadezinhas
do interior brasileiro. Mas sem que esses ajustamentos de pinturas a poemas
possam ser atribuídos a passiva subordinação da pintora ao poeta. O que
aproxima um do outro é a mesma espécie de lirismo nostálgico, terno e, por
vezes, melancólico, que os anima. Um lirismo que valoriza o que de mais simples,
de mais cotidiano, de mais constante, nos rodeia, evitando o grandioso, o
pomposo, o excepcional.
Será, então, que podemos dizer da
pintura de Marly Mota que é ingênua no sentido em que foi ingênua a de Henri
Julien Felix Rousseau? E afirmar que em Marly Mota se repete o caso do “le
douanier” que, como o mesmo Carlos, do poema de Ascenso Ferreira, aprendeu sem
ser ensinado? De certo modo. Sim.
Estamos diante de uma pintura que tem
o seu estilo: virtude que pintor algum atinge sem deixar de ser um mero
aprendiz ou um puro imitador de outros pintores. Mais: sem adquirir qualquer
coisa que se associa à palavra “mestre”. Marly Mota pode ser já considerada
perita num gênero de pintura que tem, no Brasil, um predecessor admirável em Joaquim
do Rêgo Monteiro, Joaquim, adolescente, recebeu, decerto, influência do irmão já
mestre: o insigne Vicente. Mas a pintura que nos deixou não foi cópia da do
complexo Vicente mas uma busca de simplicidade cotidiana que fixou em telas também
líricas: flagrantes de Paris, cidadezinhas francesas e do seu e nosso Recife.
Assim é a pintura de Marly Mota:
impregnada do seu bom senso poético voltado para a simplicidade cotidiana. Mas não
a simplicidade cotidiana das arvores, das plantas, das flores: a que anima a
arte de Mestre Francisco Brennand. E sim a das pequenas igrejas, a dos sobrados
comuns, a das casas de porta-e-janela.
O anedótico que lhe acrescenta é, em
muitos casos, supérfluo. O interesse documental que oferece chega a ser, por
vezes, uma excrescência, do ponto de vista, quer lírico quer pictórico, da arte
de Marly Mota. Mas sem esses anedótico, ela talvez não compreendesse aquelas
igrejas, aqueles sobrados, aquelas casas: o que neles é humano. No que é possível
que se engane.
Marly Mota
por Abelardo Rodrigues
Marly Mota expõe pela primeira vez. A
exposição decorre de uma experiencia recente; revela que a iniciante na arte da
pintura é uma intuitiva no domínio das cores, com as quais parece dar a tudo
que faz uma atmosfera poética mais acentuada nas telas de autodidata porque, em
busca do objetivo estético, não recorre a falsos recursos pictóricos. E mais:
transpõe para os quadros seu mundo de criança cheio do colorido mágico das
cirandinhas, dos pastoris, dos bumba-meu-boi, dos balões e fogueiras juninas,
quase tudo vivido no pátio da igreja de bom jardim, a cidade da sua infância,
cuja pureza arquitetônica ela ressalta e valoriza.
Sem sofisticar o espírito ingênuo da
pintura que realiza com humildade, Marly Mota apresenta, nesta exposição, o que
há de mais fundamental para a experiência do artista: o trabalho honesto. Por
isto não tem o menor constrangimento de ser ou não situada no clã dos chamados
pintores primitivos, no qual se inclui a nossa Gina. Muito menos se preocupa em
ser colocada ao lado do velho Luís Soares, um dos integrantes do Salão dos
independentes, realizado em 1934, no Teatro Santa Isabel, tido apenas, na
época, como pintor moderno. Era Luís Soares um artista acadêmico que, se
juntando, então, a Hélio Feijó, Augusto Rodrigues, Nestor Silva e Percy Lau,
deu um novo sentido a sua pintura. Sendo ingênua, nada tinha de instintiva.
Era, antes, o resultado do súbito alumbramento de um homem intelectualizado
diante da força a da beleza da expressão popular, que tardiamente percebera
existi, conseguindo, mesmo assim, absorvê-la e transmiti-la através da arte,
como hoje tão bem sabe fazer, com técnica diferente, outro espírito e outra
segurança, Gilvan Samico, um dos maiores gravadores do Brasil.
A verdade é que, sob um dos aspectos
mais importantes da pintura, Marly Mota pode, sem dúvida, ser posta ao lado de
um Luís Soares, tanto quanto de um Heitor Prazeres. De um F. da Silva e de um
Cícero Dias, mesmo de Cícero que expôs aqui, em 1948, vindo de Paris, bem
diferente do da década de 20, já não mais figurativo. É que, na pintura de
todos eles, seja qual for o gênero, dentro do que cada uma conserva de
peculiar, há um forte traço de ligação; os valores regionais, que lhe dão
sentido, definem a presença e a identificam exatamente como expressão
brasileira.
Poderão dizer que Marly Mota não
possui inteiro domínio da técnica, o que não surpreende a quem sabe ser ela um
autodidata, há pouco iniciada na arte da pintura. Insto pouco importa. O que
vale é a sua fidelidade às cores e às formas regionais, caminho certo. E também
a sua humildade, a vontade de chegar ao que deseja através de sua própria
experiência, assegurando-lhe o sentido humano da mensagem.
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